Quadros da casa dos Haesbaert
A Casa de Frente
A estrada que ligava vila clara com a Mata, tinha um trajeto diferente: depois de passar pela casa do tio Cote, o cemitério à direita e no alto da colina, na esquina a casa do Orlando (onde funcionavam anexo a Escolinha da Emmy (minha mãe) e dobrando ainda à direita, indo em direção a mata, sem que primeiro passasse na casa do tio Luiz e primo Lélio, (onde hoje, na entrada, encontra-se um portão avermelhado onde se lê Museu Fragmentos do Tempo) e mais recentemente, em meio aos eucaliptos, a aconchegante hospedagem do tio Dique e Marlene com seu famoso arroz de carreteiro feito na panelinha de ferro, (herdada da vovó Zica) acompanhado com o estimulante “gananá” e dali, à esquerda, seguindo sempre pela estrada arenosa, a visão se depara com uma enorme casa pintada em cores alegres, puxando para o rosa – é a casa do tio Aldo, também do vovô Reinaldo, que foi construída há cem anos pelo nosso bisavô Christiano).
Um tanto afastado da estrada, com um belo terreno na frente e cercada de construções quase centenárias como a própria casa e cada um com sua história. Um muro de pedras rústicas foi construído para delimitar o espaço e seguindo o terreno, um pouco mais alto, o lugar reservado para o jardim, à esquerda do portão e calçada que leva a cozinha, e a esquerda, um espaço plano onde foram plantadas árvores frutíferas e construídos “balanços” enormes, confortáveis e aconchegantes. A casa toda de pedra, cuja parte principal era compostas de seis cômodos grandes, seguindo-se outra parte que se compunha de despensa, quarto para banhos (e na minha infância com banheira feita de lata, e um chuveiro no mesmo estilo, que eram alimentados por baldes de água morna. Ali a construção dobrava em forma de L, emendado uma cozinha comprida e estreita com a área dos fundos, onde fica os tanques para limpeza de utensílios e roupas, cheios sempre de água corrente que nunca secaram, (cuja sobra correm em valetas que vão alimentar aves e animais mais abaixo, fora do domínio doméstico) que causavam mágoas ao poço, cavado nas pedras, cujo balde não descansava nunca, subindo e descendo com seus sons característicos. Cozinha e área dos fundos é ligada com a calçada do nosso velho portão.
Os muros da frente desencontram-se e do lado esquerdo era o lugar preferido para as fotografias da família, já que o jardim propriamente dito, que esfatiava a cerca da área, era sagrado para as florezinhas que vovó Zica cultivava com tanto carinho: chitinha, dálias, zabumbas, as próprias “perpétuas” que imitavam o seu nome sem esquecer das margaridinhas amarelas que eram uma praga mas que davam um tom alegre no meio de tanto colorido. A árvore, em frente, hoje é um pé de abacate, mais naquele lugar já teve coqueiros, que tantas outras fotografias não mostraram. A esquerda do portão tinha uma laranjeira que com certeza o tempo se encarregou de derruba-la. E como toda casa antiga, muitos pés de camélias, cravos, três marias e trepadeiras mil que se perderam nas minhas lembranças, assim como árvores frutíferas em geral e as famosas laranjeiras e bergamotas.
Mas os caquis, estes nenhum vivente que tenha passado por lá, poderá esquece-los como os vi ainda há pouco tempo, já na sua época áurea, enfeitando os galhos secos por toda à parte. A pinguelinha improvisada, serviu muito nos dias mais úmidos, e se não existe mais com certeza ficou gravada nas minhas lembranças.
Minha Casa cor de rosa - a casa de lado
Copiei de uma foto antiga do tempo em que os caquizeiros eram apenas pequenas árvores, cheias de galhos verdes; junto ao muro tinha uma laranjeira, bem perto do portão, amparada por um amontoado de pedras comuns, formando um muro. Em muitas fotos a árvore apareceu, depois o tempo se encarregou de derruba-la. Era um lugar escolhido para as fotos da família, algumas delas eram batidas da casa para o espaço da grama onde de cada lado eram construídos galpões que até hoje existem e têm suas histórias. Lembro-me de uma foto que formava um grupo muito elegante, batida de dentro do pátio, onde a família toda estava com suas melhores roupas, os meus tios mais velhos formando a barreira, (intercalando lindas moças e fortes rapazes); sentados ao centro os avós e as mães com filhos no colo, na frente, sentados no chão, a criançada que era formada de três tios e cinco sobrinhos, era uma turminha muito amiga que depois de empurrões e propostas negociavam: (os que tinham sapatos que ainda serviam) entrelaçavam as pernas para esconder os descalços, mas como aquilo demorava…eles não viam a hora de debandarem correndo e continuar seus brinquedos preferidos, como a doma dos caquis chucros, as pescarias no lajeado e a hora do café da tarde, que com certeza estaria ainda mais caprichado nestas ocasiões.
Neste espaço lateral da casa, com o chão coberto de areia, branquinha e fina, natural da região, encontrávamos aconchego em forma côncava, as “redes” ou “balanços”.
Eram duas armações de madeira que sustentavam através de hastes de ferro, um arco formado por ripas finas, que se balançava através de movimento. Neste espaço também tinha uma laranjeira, que serviu de cenário para uma fotografia do vovô Reinaldo com o Aldo e a Eny, ainda nenês. Um dia eles já crescidos, gravaram suas inicias e as renovaram em cada reencontro.
Como a casa era em forma de L, a frente da cozinha fazia parte deste cenário, eu lembro ainda com vagas lembranças, as tias tinham uma casinha de verdade, onde aprendiam a cozinhar de verdade, em um minúsculo fogão de verdade, arroz e feijão de verdade, pão fermentando e assando de verdade. Tudo de verdade, para que fossem donas de casa de verdade como realmente foram! e eu queria ser como elas, quando crescesse, mas minha infância foi jogada ao vento e vivi outras realidades. Benditas as Meninas Itas!
A escada de pedra, (na foto) era guardiã da casa, reservada para as visitas de cerimônia, dando para o varandão, lugar reservado também para uma pequena saleta onde o vovô se reunia com os amigos para um jogo de baralho (saleta que foi demolida mais tarde) – ou para que, sentados num banco junto à parede, a gente via o nascer da lua nas suas mais lindas tardes, de onde o clarão surgia atrás do cerro da tia Talita, formando uma bela paisagem.
Na lateral tem três janelas, a primeira dava para as sala de visitas, a segunda para o quarto dos avós e a última para uma enorme sala de jantar, onde além dos móveis comuns, é abençoada pelo “Nosso Relógio” que além de bater as horas, acalentou filhos, netos e bisnetos por dezenas de anos.
Ah, a nossa escada! Quanta coisa presenciou na sua vida centenária! Nascimentos, casamentos, chegadas e saídas de visitas, tardes de preguiça e conversas entremeadas de risadas e cochilos, lágrimas de saudades e muita recordações, suspiros de amor, confissões de gente moça ou recém casados ou um descanso apenas entre uma lida e outra. …e a janelinha lá em cima? daquela ninguém sabe contar nada: e quem adivinhar vai receber tudo que sonhou nesta vida. Serei eu?
A cozinha da Zica
Jamais a vi na janela, uma ficava muito junta ao fogão e este sempre tinindo de tanta lenha e as panelas e chaleiras prontas para qualquer emergência. A outra, onde se lava os utensílios domésticos sempre com suas bacias, uma para lavar com o famoso sabão feito em casa, um pedaço de pano ou esfregão e ao lado uma vasilha velha com cinzas, para arear talheres e fundos de panelas. Jamais vi vovó na janela. Ao notar a presença de visita, ela secando as mãos no avental e quase sem tempo de tira-lo, corria até o portão, abrindo e ao ato de abri-lo, acompanhava com seus braços, envolvendo a todos com seu carinhoso abraço. Escancarados portões e abraços, num gesto de bem receber, cheio de amor e saudade.
E abrindo portão e coração, enxotando cães e tentando enxotar as lágrimas, num arrastar de cadeiras, como um convite ao descanso, ao lazer, ao prazer de conversar, de se sentir amada, acarinhada…enquanto as moitas de hortênsias, chitinhas e perpétuas assistiam caladas ao encontro que se repetia tantas e tantas vezes. E depois de suspiros e abraços, lá sumia ela para dentro da cozinha, oferecendo as famosas rapaduras de amendoim e melado, ainda mornas e trazendo a forma do pires que lhe serviu de forma: redondas como o sol e a lua, redondas como o formato do seu coração e da áurea de sua alma luminosa.
E passaram muitos anos e lá está o velho portão, fechado, sério, transbordante de saudade, estático, esperando, mas esperando o quê? Hoje só ouve uma doce melodias dos pássaros em revoada, que passando envoltos e em vôos rasantes, espiam desconfiados, esperando o ruído do portão se abrindo!
A varanda dos fundos
Existirá um lugar mais acolhedor que aquele, junto a bica e onde o caneco de alumínio te espera para o primeiro gole de água? De um lado a cozinha e as rapaduras, de outro a água mais saborosa do mundo!
O tanque de lavar roupas, enfeitado com vasilhames floridos: qualquer vasilha sem uso servia como vaso para plantar folhagens de qualquer espécie, ganhas da vizinha, colhida no mato, algum chá de losna ou boldo que pudesse socorrer alguém em qualquer hora. Ou o pé de lima cheirosa, cuja fruta era amarga, mas as folhas…que temperadas com açúcar mascavo, mais parecia guarapa e mesmo que tudo estivesse bem, era um pretexto para um chá estomacal.
Local de conversa, uma paradinha antes de seguir viagem ou mesmo descarregar o carro ou carroça e entrar para a casa nas tantas visitas que a vovó recebia. Hoje o silêncio reina no lugar, o poço da água fechou para dar lugar só à bica de água, que soluça sozinha, enquanto o caquizeiro cresceu, e como é lei da natureza, e sobre ela ninguém interfere, as folhas caíram e só os frutos enfeitam o espaço tão vazio. Mas quem irá escondê-los, ainda apertantes, nas tulhas de farinha, para oferecê-los às crianças, quando maduros? A fumaça acanhada hoje, teima em discordar com o verde das árvores, confundindo-se com o colorido da tarde, avisando que a cozinha passou para o outro lado, mas que o fogão de lenha continua sua missão: esquentar o ambiente, fazer assados, assar pães e fazer rapaduras, com formatos de fundos de pires e avisando que a vida continua.
Não tem mais tantas crianças correndo, elas competem com o silêncio do ambiente que apesar dos tempos, continua “a varanda dos fundos, florida, quase quieta se não fosse o murmúrio da bica de água!”
Meu galpão antigo
Desde quando estás aí, com estes teu orgulho de seres diferente dos outros? Quem te idealizou com este jeitão de sentinela, cujo telhado se estende para frente, como se fosse um “General de Quepe” enquanto esperas as autoridades, numa posição de sentido e respeito?
Percorrendo as prateleiras da minha memória, quando eu era menina, tu já existia e com toda esta pose que não houve vento ou temporal que te tirasse do prumo. Lá bem no fundinho da memória, algumas vezes fui até ajudar minhas tias a fazer uma arrumação e trocar os lençóis das camas, mas antes disto, devíamos “afofar” os colchões (quando elas introduziam as mãos nos buracos que ficava na parte central, remexiam as palhas de milho desfiadas até que elas ficassem bem soltas e os colchões altos e macios.Voltávamos com uma trouxa de roupas sujas e alguns ovos que colhíamos de algum ninho clandestino onde alguma galinha atrevida e esperta procurando um lugar tão acolhedor para fazer suas ninhadas. E eu, aproveitando a distração das minhas tias, voltava correndo e dava uns bons pulos nas camas para ver se estavam fofas mesmo. Ah! Que delícia! Até parecia uma cambalhota nas nuvens, aquelas branquinhas e fofas…
Era um lugar misterioso, lembrando casa abandonada de algum livro de histórias, ou a casa dos sete anões, cada um com sua caminha…e eu, a Branca de Neve, a da história, que arrumava a casinha e terminado o “árduo” trabalho, me deitava um pouquinho em cada uma delas, para me sentir no “Mundo das Fadas”…até que um baita medo percorria minha espinha e eu fugia correndo para a casa da vovó que era bem mais segura, sem teias de aranhas, morcegos, assombrações, feiticeiras que cozinhavam meninas arteiras em caldeirões de sabão ferventes. Cruz-credo!
Hoje o galpão continua sua imponência, talvez transformado em depósito, mas continua guardião, é a entrada para se chegar á cozinha da tia Nena.
E sentindo que o tempo passou mesmo, pois os caquizeiros que não dão frutas, hoje nem nos convidam para doma-los, como se fossem cavalos chucros. Não são mais aquelas árvores amigas, pois estão tristonhas sisudas como nós.
Que continues assim, sério, imóvel e sem tirar o capacete, sempre nos esperando, sempre sério, sempre o nosso General, que sempre nos saudou, imponente e sem tirar o “quepe”.
A roda d´Água
É a primeira construção, à esquerda: tão velha como o próprio tempo. Quase não te reconheço, assim, enrolada no manto do passado. Tentei te fotografar, mas parece que te escondes enquanto eu, ansiosa, procurava um ângulo qualquer que me identifique contigo.
Como é difícil lembrar de um passado que ficou enterrado no esconderijo do “ontem”, sem um som de serra, sem um grito “oi lá boi”, sem um chamado de “sai daí, criança”, sem uma ordem que grite e comande: derrubem, cortem, arrastem, puxem, rolem, deixe…Nada!
Sei que foste “a serraria”, que serrou toras imensas de árvores de lei e comuns, de angico, eucaliptos, pinheiros…e de ti saíram às madeiras que construíram os galpões, casas, moerões, cercas, janelas, portas…Mas pra que? Para onde foram, para que serviram? Para fomentar o progresso, construir palácios, escolas, igrejas, agasalhar famílias, isolar terrenos, construir pontes, carroças, vagões, demarcar propriedades…
Não seria melhor ficar tudo como estava, com matas virgens, pinheiros frondosos, rios correndo soltos e livres, sem pontes, sem lagos, sem divisas, sem açudes, sem taipas dividindo arrozais, cercas e portões aprisionando, prendendo, escravizando…
E dos restos da madeira, feito lenha, queimando, virando fumaça, envenenando o ar, sufocando ou aquecendo…
E o açude transbordou, a água invadiu, a roda quebrou, a parede apodreceu e caiu, os marimbondos, se apropriaram dos sótãos, as paredes caíram, a poeira se apropriou de tudo, dando lugar ao pó, só ao pó. E o pó integrou-se à terra e a água molhou a terra e cresceram novamente as folhagens, as moitas, as árvores, e no meu olhar cansado e triste, na minha demência de velhas saudades, ouço novamente o murmúrio da bica a mover de novo a roda, o borrifar as bolhas em profusão, a explodir as torrente de água, a florir os salsos, a desenterrar as pedras, a refletir os troncos no banhado e a natureza toda entra em êxtase, e tudo se move, e vibra, e tudo volta à vida…no meu olhar demente de velho esclerosado que luta para que o passado não o cubra com a cor do manto do tempo.
Se alguém procurar e não enxergar a nossa serraria, com a roda d’água movendo-se através das moitas rodando, rodando, borrifando, esparramando torrentes de espumas transparentes é porque não sente mais saudade, que suas lembranças devem ter se misturadas com os filetes de líquidos escuros e lodosas que correm para algum lugar bem longe, para esconder a sensibilidade que ainda aflora no resto de sua alma, também